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quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

sobre marejar

E agora me pego com água transbordando dos olhos, algo parecido com choro mas que não o é. É marejamento: a prática de limpeza que extirpa por todos os orifícios o que insistia em não abrir espaço. É diferente do choro, pois é como se o choro lidasse com algo que ainda está colado, e esse marejamento lida com o que já descolou. 
Os romanos tinham uma coisinha chamada lacrimatório, no qual marejavam ou choravam dentro e o abandonavam nas sepulturas de quem fora dar uma volta do lado de lá. Uma vez, quando bem mais nova, me deparei com um destes em um museu, e achei que os romanos guardavam as lágrimas para temperar comida. Havia algo de boticário naqueles vidrinhos, mas não entendia que provinham, em grande parte, não do tempero, mas da destemperança. Por achar isso, experimentei chorar sobre o prato de comida uma vez e senti as tripas revirando da angústia que voltava pra casa: a casa da qual havia sido expulsa. No fim, entendi que, chorando ou marejando, as lágrimas são para o abandono. Elas despencam-se em um movimento suicida e espatifam-se nas mais variadas superfícies, manchando papéis de cartas, legitimando o infortúnio da despedida ou da desmedida voracidade com que devoramos nossos afetos.
Mas digo tudo isso porque hoje meus olhos marejam, e não choram. Marejam em uma enxurrada líquida e sem peixes. Sentindo descolar, descosturar, desatar, desmanchar, desabotoar e tudo o que é inverso ao que o verbo se propõe. Todos os excessos que carrego como uma roupa fora de estação. E como tudo o que rompe é dolorido - há melancolias tão físicas quanto um quebrar de costelas - nesse exato momento me pego marejando o oceano interno. Assisto evaporar gota por gota do que na garganta parecia tão sólido - erro comum: confundir o estado das coisas. Sinto que no meio disso tudo houve algo de choro, mas me escapou. Por ora marejo.

Caso alguém escorregue em mim derramada por ai... é que navego de dentro pra fora.

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