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sábado, 20 de setembro de 2008

quase, quase.

[de 24/08/2007]

Cláudia não via um futuro promissor cheirando á óleo e lidando com clientes que bebiam o dia todo. Cláudia não agüentava mais pegar o ônibus mais lotado e agitado de manhã, e voltar no caminho mais vazio e perigoso de noite. Eram tantos os sonhos de vida, que se acabavam ao sentir o cheiro do banheiro que lavaria todas as manhãs, ou de ter que agüentar todas as cantadas e desacatos durante todo seu expediente. Não era a primeira vez que Cláudia era explorada.


Tia Clara,

Desculpa se este papel chegar até as suas mãos com alguns borrões. Desculpa se eu irei te deixar apavorada, saiba que eu estarei bem.

Você sabe tia, nada ta fácil por aqui. Desde que mamãe se foi (já faz 5 anos, o tempo corre), eu tenho tido que agüentar muitas coisas aqui em casa. Coisas que pareciam pequenas, hoje tomam rumos grandes e sérios, e eu resolvi por um ponto final nisso tudo.
Eu sempre tentei cuidar do Fabinho e do Rafa da melhor forma, porém hoje eles ficam o dia todo na rua, e quando estão em casa, estão pra pedir dinheiro que eu consigo apenas vendendo aquelas bijuterias que eu ainda faço. Tenho me matado de estudar pra ver se consigo mudar a história dessa família, e quem sabe um dia, construir a minha. Mas tia, não tenho tido sucesso. Cada dia que passa, as dívidas aumentam aqui em casa, o dono está por nos despejar, telefone foi cortado, luz e água também. Tenho que pedir de vez em quando, porta a porta, alguns mantimentos básicos para ter o que comer.
Só recebo não a cada entrevista de emprego que vou procurar. Por eu ter 16 anos, fica difícil ter alguma oportunidade verdadeira.
E eu sinto falta, tia, sinto falta do carinho da minha mãe, dos conselhos dela, ou do jeito que ela tinha de nunca deixar faltar nada em casa. Batalhadora que não caia jamais. E é neste ideal que eu vou me apoiar daqui adiante.
Resolvi abandonar os meus irmãos, eles não precisam mais de mim. Resolvi abandonar o meu pai, que semana passada cometeu um erro irreversível comigo, um erro que eu nunca mais vou perdoar, um erro que eu esperava de qualquer monstro, mais não, não do meu pai.
Estava de noite, eu tinha acabado de voltar da escola, meu pai estava em casa, bêbado como jamais estava. Dei um beijo na bochecha dele, e fui pro meu quarto pra evitar brigas. Ouvi ele fechando as portas, e apagando as luzes, eu já estava deitada quando percebi que ele estava entrando no meu quarto. Levantei, pra ver se ele precisava de alguma coisa, ou se ele queria que eu esquentasse a comida. Quando vi, ele havia trancado a porta com a chave, e então, começou o maior pesadelo da minha vida. Talvez tenha sido pior do que ver minha mãe morrendo lentamente com a maior vontade de viver. Nada foi pior do que ver os olhos azuis do meu pai, me fitando como se eu fosse mais uma vagabunda de esquina que ele estava acostumado a lidar. Eu ERA sua filha.
Sim tia, vou abandonar tudo, acho que vou morar de favor na casa de uma amiga que mora em Guarulhos e por lá ficar até conseguir um apartamento de aluguel, sei lá.
Escrevi para você, porque você a única da família que eu ainda mantenho contato, e eu não vou te pedir mais nada além da sua atenção ao ler esta carta, porque eu sei que você também não pode me ajudar.

Espero que você esteja bem, se cuide, ok? Fica com Deus, e não se preocupe comigo.

Beijos,
Cláudia.


Cinco anos depois, ela ainda estava lá. Era mais uma tarde vazia, que passava entre cervejas, cinzas de cigarro, informações sobre ruas e avenidas, e a servir quem a pedia. Estava de costas lavando a louça, e ouvindo qualquer coisa que passava no rádio. O bar estava sem movimento, e a tarde suava calma e lenta. Quando um cliente entrou, e pediu uma cerveja. Cláudia sem virar as costas, foi pegar a cerveja e com ela ainda nas mãos, olhou para o cliente. Era um homem de uns 50 e poucos anos, bem vestido, de olhos bonitos, porém tristes, que num instante de segundo remeteu a Cláudia tudo que ela queria esquecer. Uma lágrima caiu de seus olhos, enquanto os olhos do senhor pareciam arregalados e assustados. A cerveja caiu no chão, e partiu em mil estilhaços, como o coração de Cláudia.
A tarde passou, o bar fechou, nada foi dito. Cliente saiu, cliente entrou, cliente saiu, e as portas se fecharam mais uma vez. No ônibus agora vazio, Cláudia olhava pela janela e via as crianças nos faróis, meninas com saias curtas a cada esquina, velhos jogados na calçada úmida, provavelmente sentindo frio.
Cláudia não queria mais se perguntar o ‘por que?’ de tudo que aconteceu naquela tarde, ela não conseguiria obter respostas. Tudo que Cláudia sabia, é que sua vida até então tinha sido apenas exploração, em troca de mais exploração.
Desceu do ônibus, andou um pouco, chegou em casa, abriu o seu apartamento, deitou na sua cama, trancou as portas, se trancou dentro do seu quarto, apagou as luzes. Dormiu.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Diz quanto vale

O dinheiro que encontro no chão,
A festa do ano novo,
O lugar vazio no ônibus,
Um dia esperado,
Um dia improvisado,
Para qualquer coisa,

sem você.

Então criei meu céu nebuloso,
Tentei não ficar com cara feia
Ao descobrir que desisti da vida
Quando te vi atrás da porta.

- Alô? Mãe, ela me deixou.
- Filho, calma, ela só vai desocupar um lado da cama
e reduzir pela metade

a conta de telefone.


Cortei com serrote a sua parte.
A cama já não serve mais,
tentei que virasse solteira.
Mas ela não superou, virou lixo.

Vendi o carro
Comprei em cigarro e café

Vendi o carro
Tô andando de cigarro e de café

Vendi o carro
Pela a metade do preço que você sugeriu.

Desculpa?

Embalei o álbum em papel camurça,

- Brother, que eu faço com as coisas que ela deixou aqui?
- Dá embora.


De porre,
Copo na minha mão,
Televisão chiando,
Caneta nos dentes,
Cigarro molhado no café,

Decorei: na foto do buquê seu tio avó aparece lá atrás dormindo.

São quarenta e cinco, no total.

A capa azul não me agrada,

Mas o som da festa sim.

Não gosto do seu sorriso da terceira de trás para frente,

Parece forçado e forjado.

Desculpa.

Não vou poder continuar por hoje,

Preciso tomar banho. Não sei.

Amanhã te vejo, ta?

Aonde?

Pode ser lá na dos seus pais,

Aquela décima segunda,

Que eu apareço segurando a sua mão e olhando pra câmera errada.

Até amanhã meu amor.

Eu amo você.
Do tempo, a gente vira presa. Do medo, a gente se esconde. Da vida, a gente se desespera. De hora em hora, pessoas ficam depressivas e deixam a sinceridade e a loucura tomar conta do corpo e agirem por vontade própria. Em outros instantes, o sentimento verdadeiro se liga às lembranças e gera lágrimas.

No desespero, tudo caminha torto. Na trilha, as migalhas somem e perdemos os sentidos. O vazio nos toma e... adeus, alegria.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Sem horas e sem dores.

Jaz a notícia do extraordinário homem que nasceu de cabelos azuis.

Jazem também os cabelos amarelos e alguns fios de vermelho. E estirado sobre o chão, jaz o corpo do velho castigado.

É triste ser deixado.

Jaz, aqui, o homem que nasceu com o maior nariz do mundo. Jazem também a enorme boca maquiada, e o seu semblante carregado.

É triste esconder.


Jaz, em suas mangas, os truques já manjados. O truque no olho e o olho borrado.

É triste ser passado.

Jaz o homem que não veio de mãe, e não deu no pé. De lugar nenhum e no canto qualquer.

É triste não saber.

Jaz, aqui, a história do extraordinário velho engraçado,

ou

do homem que na vida teve que maquiar a boca pra sorrir.



Quebra-se a rima:

É triste ser palhaço.

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

versão di.

Eram quase nove horas quando ele atravessou a sala com tudo. Bateu a porta de um jeito que fez estremecer todas as paredes da casa. Encolhi os ombros, serrei os olhos com o barulho, e senti estremecer até os meus ossos. Não me arrependi. Talvez ele nunca fosse entender mesmo, e eu não precisava que ele entendesse. Para ser franca, nem queria. Quem sabe se eu devesse ter corrido atrás dele, gritado seu nome, se pelo menos lhe desse um pequeno abraço que seja. Um abraço não curaria nada! Eu sei disso porque anos atrás quando eu saí batendo a porta, a última coisa que queria era a porcaria de um abraço.
Olhei entusiasmada para a janela toda molhada de chuva, sempre achei que ela ficava mais bonita assim. Uma folha de árvore, bem grande, grudou no vidro por alguns segundos. Aproximei-me e vi que era seca, então caiu. Logo voltei meu pensamento nele, aquele que fiz sair feito um furacão tão furioso que destruiria uma cidade inteira só para aliviar sua raiva. Grande bosta, ele caiu como a folha, e de tão seco que era não fez falta. Caiu de seco que era. E acredito que seria impossível calcular quantos quilos aquele garoto pesava para mim.
O cigarro ainda queimava no cinzeiro, em cima da mesa de centro. Eu o acendi logo que resolvi falar tudo de uma vez. Foi tudo isso o que durou a nossa briga. O fim de meses inteiros, anos contadinhos dia por dia, resumiu-se nesse meio cigarro queimado. Uma pena, deve ser para ele. Uma pena deve ser para os olhos daqueles que nos acompanhavam como se fossemos uma novelinha. Uma pena para os tios, os primos, e os amigos que nos azucrinavam nas festinhas de família. Uma pena também deve ser para aqueles invejosos que tinham o que invejar e agora não sobrou mais nada. Na verdade eu não me importo muito mais.
Abri a geladeira, eu sempre faço isso para matar o tempo. Agora eu queria fazer alguma coisa com o tempo. Estava ficando deprimida. Acho que meu egoísmo me pegou severo demais. Mas toda vez que eu pensava na boca que eu já havia enjoado, subiam-me náuseas. Era um desgosto só imaginar tudo de novo, todo aquele tempo que hoje está morto. E eu falando em matar tempo. Nunca matei tanto tempo estando ao lado de alguém. Exatamente assim, acho que estávamos apenas matando o tempo. Matamos belos meses, maravilhosos dois anos e poucos dias, doze horas e meio cigarro queimado. Bom, agora até o cigarro já havia apagado.
Fico pensando se algum dia eu o topar pela rua. Caminharíamos algumas quadras juntos, ele forçaria um sorriso escancarado e eu me encheria de tédio, mas seria bem agradável. Ele certamente perguntaria a quantas anda a minha vida, e comentaríamos de alguns conhecidos. Depois na esperança de me conquistar de novo, ele me convidaria para um encontro, só para quem sabe, algum dia, ter a chance de me massacrar como eu fiz anteriormente. Talvez eu até deixaria escapar um sorriso sincero. Nos despediríamos na próxima esquina e haveria mais um fim de um dia estúpido, daqueles que só servem para enxer sua vida de horas.
Entretanto, se eu acabar por me apaixonar novamente por ele, seria por algum detalhezinho que eu ainda não fui capaz de enxergar. E aí, ele seria uma outra pessoa, tão nova quanto uma daquelas que se vê pela primeira vez em um bar. Porém, esse futuro nem sequer existe, e eu não quero que venha a existir.
A realidade é que eu já o troquei, por alguém bem menor que ele. Mas que se encaixa perfeitamente nessa porção limitada que eu sou. Os seus braços se parecem mais com os meus. Simplesmente fui correr atrás dos meus interesses.
Deitei no sofá, brincando com controle remoto da televisão enquanto paquerava o telefone. Eu tinha para quem ligar, só não queria ainda.