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domingo, 11 de maio de 2008

Quando encosta o fim

Deve ser horrível envelhecer. A cozinha branca tinha alguns detalhes em preto e cinza, e a mesa entupida de comida, estava cercada pela família toda. Um homem frágil feito um bebê tinha a pele manchada, a boca trêmula e os braços sem força alguma. Tantas vozes juntas e mesmo assim, seus ouvidos se perdiam nos seus olhos, que se perdiam no seu próprio passado. Ele assistia à sua infância, à sua timidez no primeiro encontro com a velha sentada ao seu lado, aquela moça de quando juntaram as vidas. Já foi neto, filho, irmão, pai, tio e avô. Já foi, e já está indo. Nem o relógio lhe agrada mais no pulso, o tempo passa assustador. Os gestos amargos cresceram junto com os anos, e já não existem mais chances de consertar a maioria dos erros. Das coisas que ele vai deixar para trás, só sentirá falta do que nunca teve e do que deixou de fazer. Coisas que viraram um buraco, do tamanho do seu corpo, uma cova bem funda no esquecimento das gerações não nascidas.
Então ele se levanta, porque já é hora de ir. É hora de estar em casa, de tomar remédio, de ir dormir. As pernas desobedientes mal erguem sua coluna, e os braços desconfiantes se agarram a qualquer coisa para mantê-lo em pé. Fala do prazer de rever todos os presentes, um abraço e um beijo de cortesia para cada um. Sua mão passa pelo encosto de todas as cadeiras, pelo ombral da porta, e pela maçaneta também. Chega a ser vergonhosa a falta de precisão, mas ele finge que passa por cima, e que não acabou. Deixou a casa na esperança de voltar no ano que vem, mas vai saber quantas mais hemodiálises ou injeções de insulina ele irá sobreviver. É tudo uma questão de tempo.

Um comentário:

  1. Caraca Amanda, eu escrevo bem!?!
    Não chego aos seus pés, muuito bom...
    Fiquei impressionado ao ler "quando encosta o fim", as palavras muito bem selecionadas proporcionam uma visão muito clara da cena, dá pra sentir. Vou ler tudo...e visitar seu blog sempre!!!

    Bjaum!!!!!

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